Políticas de migração desumanas nas Américas deixam milhares de pessoas em perigo, alerta Médicos Sem Fronteiras
Relatório produzido pela organização mostra que políticas do governo dos EUA repercutiram por toda a América Latina

Nos primeiros seis meses de mandato, o atual governo dos Estados Unidos (EUA) implementou a política migratória mais restritiva e desumanizante dos últimos anos, abandonando milhares de pessoas que buscavam asilo no país e deixando-as em situação de perigo no México e na América Central, segundo novo relatório de Médicos Sem Fronteiras (MSF). O documento “Indesejados: o devastador impacto humano das mudanças nas políticas migratórias nos Estados Unidos, México e América Central” destaca como as políticas e a retórica do governo dos EUA, que criminalizam a migração, repercutiram em toda a América Latina.
MSF apela a todos os governos das Américas para que renunciem às táticas de restrição e abandono e, em vez disso, implementem políticas humanitárias que garantam o acesso ao asilo, aos cuidados médicos e à proteção ao longo do corredor migratório latino-americano.
“Essas políticas, combinadas com a redução drástica da ajuda e da presença humanitária ao longo da rota migratória, tiveram um impacto devastador no bem-estar das pessoas que buscam segurança”, afirma Franking Frías, coordenador de operações de MSF no México e na América Central. “Esse sofrimento é deliberadamente invisibilizado, ocultado pela narrativa imprecisa de que a migração parou. Mas todos os dias vemos as consequências em pacientes que vivem com ferimentos não tratados, traumas causados por violência sexual e graves problemas de saúde mental que tornam a vida cotidiana impossível.”
O relatório baseia-se na análise de dados médicos de MSF e em entrevistas com pacientes de várias nacionalidades em diferentes estágios da migração, além de profissionais de MSF que trabalham ao longo da rota migratória no Panamá, Honduras, Guatemala e México.
Fechando as portas para a busca de asilo
Desde o final de janeiro, o governo dos EUA fechou as principais vias para solicitação de asilo e proteção, incluindo o encerramento do aplicativo CBP One e do programa de liberdade condicional humanitária. Além disso, reforçou a segurança na fronteira com o México e deportou pessoas em condições de vulnerabilidade, incluindo deportações com uso de algemas, envio de deportados para outros países e separação de famílias.
“Nos sentimos abandonados e desprotegidos”, diz uma mulher hondurenha que não consegue sair de Reynosa, no norte do México. “Nunca quisemos entrar ilegalmente nos Estados Unidos. Pedimos benevolência para casos como o meu: mães que esperam há muito tempo com seus filhos, querendo dar a eles uma vida melhor. Já passamos por um processo; já tínhamos um direito. Fomos vítimas de golpes, dos cartéis, fomos enganadas, estamos traumatizadas.” A mulher havia marcado uma consulta pelo CBP One para três dias depois que o aplicativo foi desativado e todas as consultas foram canceladas.
Além disso, vários países ao longo do corredor migratório latino-americano também reforçaram as medidas de dissuasão. Agentes de segurança e autoridades migratórias na região deportaram migrantes à força, restringiram a circulação de pessoas e destruíram acampamentos onde pessoas sem lugar para ir estavam se abrigando. Também fecharam postos de acolhimento de migrantes, dispersaram aglomerações em espaços públicos, realizaram batidas policiais, detiveram pessoas arbitrariamente, aumentaram o patrulhamento e reduziram o acesso a procedimentos burocráticos, incluindo processos de asilo.
Presos em um ciclo de violência
“Ficamos em cativeiro por 60 dias”, diz um homem venezuelano retido em Ciudad Juárez, no norte do México. “[Os criminosos] me bateram na cabeça, arrancaram um dente e colocaram uma arma na minha boca para tirar fotos e ligar para um dos meus filhos nos Estados Unidos. Meu filho e meu genro pagaram o resgate e fomos libertados. O plano era ir para os Estados Unidos. O resto da minha família está lá esperando por nós. Mas com este governo americano, não sabemos o que fazer.”
Carmen López, coordenadora de atividades de saúde de MSF, conta a história de um paciente venezuelano que ela atendeu na Guatemala. “Primeiro, eles foram mantidos em um centro de detenção nos Estados Unidos por cerca de 20 dias. Mais tarde, foram deportados para o México. Durante a transferência para as autoridades mexicanas, sua mochila com itens pessoais e economias foi roubada”, relata.
Para muitos, voltar ao país não é uma opção, seja por falta de recursos financeiros ou por medo do que deixaram para trás - como as crises políticas e econômicas na Venezuela ou em Cuba, a violência generalizada no Haiti, os conflitos nas regiões periféricas da Colômbia ou as ameaças de grupos criminosos e a falta de oportunidades no Equador e em outros países da América Central.
“Nos deram um ultimato de 24 horas para pagar uma quantia que não tínhamos”, diz uma mulher salvadorenha em Tapachula, no sul do México. “Migrar não foi uma escolha política nem uma busca por melhores oportunidades econômicas. Foi uma decisão urgente para salvar nossas vidas.”
Com a busca por asilo na fronteira sul dos Estados Unidos agora quase impossível, dezenas de milhares de pessoas estão vendo o México como a única alternativa. Mas as equipes de MSF testemunham como os procedimentos de asilo no México se tornaram mais demorados e complexos em várias cidades.
Paralelamente, a violência perpetrada por grupos do crime organizado e outros atores continua alarmante, incluindo sequestros, extorsões, roubos, violência sexual e exploração laboral.
O impacto emocional da incerteza
As equipes de MSF na região, particularmente no México, têm observado um aumento nas necessidades psicológicas dos pacientes e uma alta proporção de pessoas com graves problemas de saúde mental, apesar da redução das atividades médicas desde a desaceleração dos fluxos migratórios.
Nos últimos anos, muitos pacientes têm apresentado uma necessidade evidente de apoio à saúde mental devido à violência recorrente sofrida e às condições precárias de vida enfrentadas ao longo da rota migratória. Mas, além dessas experiências, as pessoas agora enfrentam a incerteza provocada pelas drásticas e numerosas mudanças políticas, que provocam desespero quando percebem que tudo o que passaram para chegar aos EUA foi em vão.
“Os sintomas estão cada vez mais intensos”, diz Lucía Samayoa, coordenadora do projeto MSF em Tapachula. “Eles estão vivendo sob muita pressão e estresse. Muitas pessoas precisam de tratamento farmacológico, com um processo terapêutico mais estruturado e prolongado.”
Entre janeiro de 2024 e maio de 2025, as equipes de MSF realizaram mais de 90 mil consultas de saúde primária e 11.850 consultas de saúde sexual e reprodutiva, trataram quase 3 mil sobreviventes de violência sexual e realizaram cerca de 17 mil consultas individuais de saúde mental - a maioria resultante de violência - a pessoas em movimento no México, Guatemala, Honduras, Costa Rica e Panamá.
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Danielle Bastos